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COVID 04 - QUEDE O GUEDEZ?

Atualizado: 7 de jun. de 2020


A sensação é de puro desespero e por mais que ele tente, não consegue sair do lugar. Ele sente o perigo chegando, o caminho tá livre para ele fugir, mas suas pernas não se movem. Ele se concentra, respira fundo e foca todo seu esforço na perna direita, até que, de repente, sente um calor líquido escorrendo por entre suas pernas e acorda de supetão.

Aquilo não era novidade, mas o sofrimento era pior a cada dia. Já fazia 20 dias que Guedes não conseguia dormir por mais de duas horas seguidas, desde a viagem para os Estados Unidos com a comitiva, e quando conseguia, acordava chorando, sufocado ou, a pior das ocorrências, molhado de urina como agora.

Tudo o que ele queria fazer era sumir dali, se esconder em uma ilha, levar um contêiner cheio de comidas e empregados e se trancar lá até toda a agonia passar. Nunca se sentiu tão frágil quanto agora, ameaçado como um pobre vulgar qualquer, um morador de rua sem-teto, que não tem como se esconder ou se proteger.

Já havia se trancado em casa, não aparecia mais em reuniões e já havia se decidido a pedir demissão e abandonar tudo. A cartinha de demissão já estava prontinha debaixo do braço, cheia de vossas senhorias, suas excelências, etc, mas sem que ninguém esperasse, o maldito do Marreco irrita o Chefe e fura a fila, pedindo demissão e deixando-o na espera, com a cartinha na mão.

Tudo bem que seus patrocinadores provavelmente não o deixaram sair também. Jamais deixariam. Dragões maiores que ele, que cospem mais fogo e com poder muito mais fatal que o dele, lhe prometeram o céu se ele se submetesse às parvoíces do presidente e, administrando a ignorância dele, devolvesse o país para as suas ricas mãos, de onde nunca deveria ter saído.

Mas naquele momento, nada mais existia no universo a não ser aquele sentimento de humilhação, aquela vontade de ser apenas um velhinho sentado em uma cadeira de balanço em um asilo, cheio de enfermeiros à sua volta e com um milhão de justificativas para estar se urinando aleatoriamente. Mas não, era ele ali, sozinho, mijado, em sua cama de 90 mil dólares.

E não havia a quem pedir socorro. Ou melhor, havia, mas entre avisar a sua mulher que o todo poderoso posto Ipiranga estava todo mijado na cama ou tentar achar sozinho uma solução que mantivesse sua dignidade de macho-provedor-gestor, seu orgulho manda que ele recorra à segunda opção.

Por sorte já havia amanhecido e D. Maria já havia se levantado para fazer sua caminhada diária entre a garagem e a sala de estar, com uma subida na escada para o andar superior. Ouve com cuidado até que o quinto degrau de cima para baixo range, o que era sinal de que ela estava se aproximando da cozinha, onde sempre parava para tomar seu energético com papoula, e se levanta rapidamente.

Ainda meio sonolento, pensa por um momento em chamar a Paulina para limpar sua sujeira, mas lembra-se que a havia demitido dois dias antes quando soube que ela havia visitado secretamente seus dois filhos, mesmo com ele obrigando ela a ficar de quarentena em sua casa, sem ver seus filhos e seu marido, enquanto durasse a pandemia.

Ele que sempre ensinou em seus seminários que “nesse mundo todos tem o seu preço, basta saber comprar”, não sabia lidar com uma mãe que insistia em ser mãe. Quando se deu conta, estava vestindo um paletó que veio das mãos de alguém que entrou em um ônibus, que abraçou filhos que andam soltos pelas ruas, que beijou e se enroscou nos braços de algum marido pedreiro, em algum barraco fedorento cheio de gente.

Entra no banheiro, de pernas abertas, como uma criança de fraldas sujas, arranca o pijama de seda e o joga no lixo. Sente-se mal e não consegue respirar direito. É um sentimento que o persegue há muito tempo, toda vez que se lembra de seu chefe tossindo sem máscara perto dele, cumprimentando gente fedorenta na porta do palácio e depois marcando reunião com ele, logo com ele, sempre com ele, como se ele pudesse tirar da bolsa uma cura miraculosa para esse vírus terrorista ou alguma mágica que minimizasse os danos da burrice dele.

- Ô Guedes, resolve aqui! Ô Guedes, que porra é essa Guedes? Guedes, saporra de corona é invenção do PT que quer acabar com meu governo! A cura não pode ser pior que a doença, Guedes.

Até hoje ainda se arrepende de ter mencionado no começo da crise essa última frase, pois, com o cérebro limitado dele, ele gravou isso entre seus dois neurônios, e é obrigado a ouvir isso dez vezes, ao dia, como se fosse uma conclusão genial dele.

Guedes entra no closet mas não consegue descobrir onde ficam suas cuecas limpas. Ele sempre as encontrava dobradas no lado de sua cama quando levantava, quando a Paulina ainda trabalhava lá. Nunca precisou pegá-las e não fazia a menor ideia onde ficava nada em sua casa.

Abre umas cinco gavetas até que acha uma bermuda colorida, que deveria ser de algum neto seu, e veste sem cueca mesmo. Senta-se, então, na beira da cama, desanimado e passa mentalmente a lista de todos empregados que ainda estão na casa, dos doze fixos que ele tinha, e se lembra “daquela pretinha”, que era arrumadeira do andar de baixo, uma mulher pequeninha de uns 50 anos, que, segundo sua mulher, “era muito boa de serviço, apesar de ser pretinha”.

Se lembra do momento em que ela o socorreu, no dia que ele chegou do palácio do planalto, branco como neve e morrendo de vergonha por ter urinado nas calças pela primeira vez, ao saber que mais uma pessoa da comitiva do presidente havia sido contaminada.

Ao vê-lo assim, Flavinha, a arrumadeira, na sua simplicidade, deu uma gargalhada enquanto lhe entregava uma toalha e lhe disse, não contendo o riso:

- Meu vô sempre falava: “não tem homem mais poderoso do que aquele que não tem medo da morte e não tem homem mais fraco do que aquele que foge dela”.

Na verdade, naquele dia ele demitiu não só ela, mas todo mundo, apavorado com as possibilidades de contaminação que aquele tanto de “povo” representava. Mas ao se dar conta de que não fazia ideia nem de onde ficavam suas cuecas, foi forçado a trazer de volta alguns, embora não se lembre de quais voltaram e quais foram definitivamente demitidos.

Pensou por um momento que a Flavinha seria uma boa ajuda, já que ela já havia testemunhado uma vez seu vexame, então não faria muito diferença e a história não se propagaria.


Coincidência divina, exatamente no momento em que pensa nela, ouve uma voz no corredor que se parece com a dela. Abre uma fresta da porta, meio desconfiado, para conferir e, ao verificar que era realmente ela e que não havia mais ninguém por perto, cochicha:

- Menina.

Flavinha não escuta e continua conversando com alguém no andar de baixo, enquanto coloca várias sacolas plásticas cheias de roupa dentro de uma bolsa maior. Guedes enfia meio corpo prá fora e quase grita, mas ainda sussurrando:

- Menina!

Flavinha se vira assustada e Guedes a puxa pelo braço prá dentro do quarto, fechando a porta atrás dela.

- Quê foi seu Guedes? Parece que viu um fantasma.

- Não, não é nada disso... É que...

- Ah, não... Fez de novo?

- O quê?

- Se mijou todo?

- Psiu, fala baixo...

- Tá se borrando pro coronavirus ou é pro bolsonavírus?

- Menina, olha o respeito. Tô precisando que você me ajude aqui a limpar essa sujeira antes que minha mulher chegue.

- Prá começar, seu Guedes, menininha é a senhora sua mãe. Eu tenho nome, Flávia Pereira de Albuquerque, mas pode me chamar de Flavinha. Prá segundar, o senhor precisa aprender a se limpar sozinho, já que vai ficar se borrando todo, toda vez que ouvir falar desse vírus malevolente. E prá terceirizar, o senhor tá fedendo que tá um horror.

- Viu? É disso que tô falando. Não existe mais respeito na relação entre empregado e patrão. É só empregado cheio de direitos, que acha que pode tudo.

- “Empregado” não sei onde. O senhor é tão filha da puta seu Guedes que, mesmo depois de fuder com minha aposentadoria, me fazendo passar de três anos para doze prá aposentar, de ter reduzido minhas férias, de ter me obrigado a dormir no trabalho contra minha vontade por causa do COVID, o senhor ainda se esquece que me demitiu.

- Eu te demiti?

- Pela terceira vez, seu Guedes. Dessa vez porque sugeri que o senhor poderia pagar um extra por eu estar dormindo no serviço.

- Flávia, quer dizer, Flavinha, por favor, será que você não poderia relevar, só dessa vez... Eu até te pelo desculpas se quiser, aumento o salário, crio uma lei aumentando o mínimo para as empregadas, mas por favor, me salve nessa.

- Sorry, amor, mas só vim aqui buscar minhas roupas e estou partindo para meu paraíso cheio de vírus. Aliás, eu vim de ônibus prá cá e ele tava lotado de gente suada e sem máscara.

Guedes se afasta dela assustado, como se tivesse visto o capeta na sua frente.

- Você é uma... uma irresponsável!

- Hiii... Tô achando que irresponsável aqui é o senhor... de onde o senhor tirou essa bermuda?

- Ué, da gaveta, por quê?

- Hi, sô Guedes, só pro senhor saber: ouvi dizer que a D. Elvira, a lavadeira do senhor, tá ruim, internada com COVID. Dizem que é caso terminal. Acho melhor o senhor tomar cuidado com o que veste.

Imediatamente Guedes arranca a bermuda e joga pro lado, enquanto Flavinha se vira para o canto rindo. Corre, então para o banheiro e volta enrolado em uma toalha.

- Toalha também, seu Guedes. Tudo era ela que lavava. Roupa de cama também.

Guedes joga a toalha fora e se protege com as mãos. Flavinha abre a porta do quarto para sair e grita para fora:

- Dona Maria, é melhor a senhora subir aqui porque o seu Guedes tá todo mijado de novo.

Fecha a porta e deixa ele lá, irritado, sem ter com o que se proteger.

- Sua vagabunda! Some daqui mesmo. Por isso que ainda fico nesse governo, prá acabar de vez com essa mania de empregado querer ter direito! Me aguarde, me aguarde!!

De repente, Flavinha abre novamente a porta com o celular na mão, tira uma foto dele e sai correndo.

- A Globo vai adorar isso. Rá, rá, rá.

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