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COVID 08 - JOÃO APRENDE A NÃO FAZER NADA

(Um sonho de um homem possível)

João acorda assustado, de novo, às oito horas da manhã como se estivesse atrasado para algo que ele não sabe o que é, embora já esteja há quarenta e sete dias dentro de casa em isolamento, sem horários e obrigações que o delimitem.


Sempre acordou cedo, primeiro porque seu pai mandava, depois por causa da escola, mais tarde por causa do trabalho, que era longe, depois porque montou seu próprio negócio e “Deus só ajuda quem cedo madruga”.


Seu corpo ainda tem dificuldades em se adaptar a não ter horários, pois foram anos de condicionamento com o mundo repetindo na sua cabeça que “tem que estudar prá trabalhar, menino”, “ficar parado é dar ferramenta para o diabo”, “o trabalho enobrece o homem”, “crescer sem trabalhar é como colher sem plantar”, “o trabalho é fermento da vida” e outras metáforas inúteis, do mesmo nível.


Trabalhar era para ele então quase uma maldição, daquelas que todo mundo herda quando nasce, e se tornou a única razão de sua vida, em uma busca obstinada por alguma coisa cada vez maior, que ele nunca soube exatamente o que é, nunca se preocupou em perguntar e que nunca tem fim.


E como todo ser humano precisa pertencer a algo, sempre seguiu o programa padrão, abrindo mão de todas suas paixões em prol de um pacote de demandas, alvos e conquistas emprestadas pela sociedade e que ele nunca planejou para si, como um gorila primitivo cuja única meta é subir na árvore mais alta e bater no peito em disputa da primazia de quem vai comer primeiro a gorila mais sedutora.


Até que, no meio do processo surge então o coronavírus, que não bate no peito, não urra, não come ninguém e não tem vaidades explícitas e muda todo a forma do mundo ser mundo. Então, não mais que repente, seu espírito predador, sua fúria guerreira, sua ambição desmensurada se deparam com uma realidade invicta, que despeja seus quase quarenta anos ininterruptos de vida burocrática em um abismo, obrigando-o a fazer a coisa mais inimaginável na sua vida: parar de trabalhar.


Mas o processo não foi tão fácil assim como parece. Como um bom acumulador de recursos, João passou por todas as fases clássicas de negação da realidade, começando pelo “é só uma gripezinha”, “eu não fecho de jeito nenhum”, passando por “vão ter que me prender”.


Em seguida, passou a vigiar na porta e correr para fechar a loja quando os fiscais apareciam, depois a trabalhar com porta semi-aberta, depois porta fechada e vendendo pela janela, depois começou a participar de manifestações enfurecidas do tipo “economia primeiro, saúde depois” até que, finalmente, Adélia, sua esposa, que era seu amor e ele não sabia, se contamina na loja e quase morre.


Aí, em um passe de trágica mágica, ele redescobre o amor na possibilidade da perda. O mundo desmorona e ele descobre que todas suas amarras mais profundas, que ele nem sabia que existiam, estavam ligadas àquela mulher que respirava sofregamente à sua frente, e ele não havia se preparado para desatá-las.


E, num momento de descontrole e desespero, sentindo o mundo se romper debaixo de seus pés, ele se muda para o hospital, mais especificamente para a sala de espera do hospital, e se vê exposto a todo o sofrimento de uma pandemia passando ali, na sua frente, ao vivo e a cores, como um filme de terror que ele insistia até então em renegar.


Daí, consequência óbvia, com pouco mais de sessenta anos, fumante, com a saúde que é um lixo, também se contamina e experimenta pela primeira vez a visita da morte. Em um processo que passa por horas de espera em uma maca na enfermaria, a luta de sua mulher, já recuperada, para conseguir uma internação para ele, apelos dramáticos aos médicos, denúncias na TV, finalmente, uma alma mais frágil que a sua se vai antes da hora e libera para ele uma fria cama de UTI, onde mergulha em um abismo escuro e sem sonhos, de duas semanas.


Ao acordar, sente então que nada no mundo pagaria por aquelas duas semanas de vida em coma, em que passeou por cima de um muro sinistro que separa o chamado de uma morte sem sentido e os apelos frágeis de uma vida que o provoca, ainda com esperanças, e que ele ainda nem conhece direito.


Sente que nada o faria esquecer a primeira vez que abriu os olhos depois do coma e viu os olhos negros daquela enfermeira que, como uma torcedora em um momento de pênalti, sorria em uma comemoração cúmplice.


E sente, ao chegar em casa, um sentimento inédito de não pertencer a nada mais quando, ao invés de entrar diretamente na casa, se senta na varanda e vê, talvez pela primeira vez, aquela planta roxa que brilha à luz do sol, dentro de uma lata de tinta provisória, esperando que ele fizesse o tão prometido jardim que a sua esposa sempre sonhou.


E aí, como um louco que perde todas obrigatoriedades, se deita na varanda, e redescobre os sons da rua, começa a distinguir o canto de cada pássaro, a identificar as rachaduras na parede de sua casa e o cheiro das plantas de um quintal que era seu e ele não conhecia.


Passa, então, por cinco dias contados, em uma espécie de transe indignado, um arrependimento progressivo que mistura consciência com preguiça, agonia com esperança. Nada que fazia, fazia diferença e nada diferente lhe tocava mais que o óbvio diário que ele reconhece que não reconhecia.


Nos dias seguintes, descontrolado, começa então a fazer coisas sem sentido, como organizar as fotos da sua vida, assistir televisão com a família, conversar, ouvir o som do coração batendo, fazer ginástica, respirar com método, escrever o que fez no dia, descobrir como se faz pão, aprende que o pouco é muito, que o sentimento vale ouro, que acordar sem pressa é bom, que o dinheiro não é tão importante quanto queria que fosse, que é importante abrir as portas para aprender novamente o mundo.


E dá gargalhadas quando finalmente consegue entender a piada do índio balançando na rede que, frente à insistência de um fazendeiro para ele trabalhar, sempre responde “Prá quê?”. O fazendeiro responde “prá poder comprar uma terrinha” e ele “Prá quê?”. O fazendeiro diz “prá criar seu gado e ficar rico” e ele, “Prá quê?”. E o fazendeiro “prá comprar seu carro, fazer sua casa e contratar muitos empregados” e ele “Prá quê?”. E o fazendeiro “prá ficar tranquilo, sem preocupações, só balançando na rede” e ele “Ué, mas isso eu já tenho.”


Descobre que o mundo é um só, e que o medo do pescador da China é o mesmo medo do Operador da bolsa em Wall Street e o mesmo do lixeiro de Belo Horizonte, da rainha da Inglaterra, da dona Conceição de Ervália, do Mick Jagger e do Pedro da padaria.


Como um louco, olha o mundo agora com outros olhos e com os olhos dos outros, buscando verdades aonde nem sabia que podia olhar. Revisita antigos sonhos e busca velhos amores em sua memória com a simplicidade e sinceridade de quem anda pela mata para sentir o cheiro das árvores que caem e alimentam outras que crescem de seus espólios.


Descobre que o mundo é duplo e o mesmo homem que ele havia deixado prá trás, há muito tempo atrás, por vaidade ou por submissão, era o que acordava agora e lhe puxava os pés para um caminho que ele nem mais se lembrava que existia.


Não havia mais convicção ou coragem no que fazia, mas uma sinceridade comovente, como se toda a sua busca obstinada de um espaço em um pedestal, que sua vaidade e sua autoestima exigiam, tivesse se perdido em algum lugar entre a sua casa e aquele hospital.


Esse já era o sétimo dia seguido em que ele não fazia nada de relevante, nenhum conta, nem uma compra on-line, nenhum debate sobre política ou sobre pandemias, nenhum medo lhe chamava atenção e nenhuma violência lhe incomodava especificamente. Era como se estivesse anestesiado, mas num bom sentido, como se toda a essência do mundo estivesse relacionada com um estar simplesmente ali.


Respirar passa a ser um ato de abandono e andar, uma relação de cumplicidade com o mundo, quando o pé no chão ressoa como se um pacto essencial feito ao nascer fosse realizado finalmente. Seus pés, finos como o de uma princesa, por anos a fio encarcerado em um par de sapatos desconfortáveis, sem nunca encostar no chão, estremecia ainda a cada novo passo que dava.


João era um recém-nascido e sua mulher, virgem de mundo pós doença, também. Ambos se recuperavam e recuperavam uma essência esquecida a cada dia, como loucos embriagados com uma droga que experimentassem pela primeira vez.


Seus filhos obviamente detestaram essa nova versão dos dois, pois eles eram só eles consigo, e, embora os pais buscassem carregar os dois juntos em tudo de novo que pensavam ou sentiam, o ecossistema diário adolescente que eles haviam criado para si em suas redes artificiais de relacionamento, não permitia que se expusessem muito a um mundo que não se conciliasse com as vidas de catálogo de decoração que seus amigos levavam.


No dia que marcou oficialmente o fim da pandemia, quando zero casos foram notificados no mundo e todos voltaram para suas linhas de produção, revisitando seus antigos traumas e reacendendo seu desespero diário, eles simplesmente se sentam em suas varandas, sem uma programação específica, apenas esperando o momento em que aquele passarinho, que sempre passa àquela hora da manhã, iria voltar para o ninho, após sair para buscar comida para os filhotes.


João, em um caderno, anota os movimentos dos pássaros, tentando convertê-los em poesia enquanto Adélia, sua nova antiga paixão, ilustra em cores em um caderno de papel canson, os pássaros em sua vivência diária, com a pressa de quem tem não tem pressa, e o retorno de brilhos das luzes da manhã.


- Descobriu a cor inferior das asas? – Pergunta Adélia.

- Ainda não.


E, alguns minutos depois, quando eles se despedem de seus filhos que, ansiosos por se comunicar on-line ao vivo novamente, saem apressados com suas mochilas cheias de carregadores de emoções sem bateria, o pássaro volta e eles então brindam com sua cerveja puro malte feita em casa e repetem juntos:


- Verde.

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