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COVID 06 - MÃOS AO ÁLCOOL!


- Porra, máscara gay é foda! - reclama Julito enquanto tenta ajeitar sua máscara no rosto.

Julito, um adolescente de 15 anos anda apressado na rua com Flavinho, seu amigo de infância. Andam pelas sombras, e como já é quase meia-noite, é preciso tomar cuidado para sair de casa sem justificativa, pois com o lockdown a polícia está em todo lugar. Os dois usam máscaras com as cores do arco-íris e com os dizeres “sexo não é doença, ignorância sim”.

- Cara, eram as únicas máscaras que tinha de graça na associação. Minha mãe tá de cama, eu não sei costurar, cê não tem máscara e amarrar camisa na cara só vai fazer a gente parecer mais ladrão ainda. – Responde Flavinho.

- Ra, ra, ra, cara, calma véi... nunca te vi tão puto assim... Mas conta aí, o que te fez mudar de ideia?

- Cara, ontem foi foda. Minha mãe, ficou mais de um mês esperando uma resposta da Caixa prá tal da ajuda emergencial. Aí ontem recebeu uma mensagem falando que ela não ia poder receber porque ela ainda tava de carteira assinada, vê se pode?

- Como assim? Ela num foi demitida?

- Pois é. Mas quando ela foi ver o que era, descobriu que o fedaputa do Seu Francisco da padaria não tinha dado baixa na carteira dela. Aí ela tá no sistema deles como se estivesse ainda trabalhando e eles negaram o auxílio.

- Caraca Véi! A gente tem que ir lá dar uns cacete nesse fidumaégua.

- Dá cacete num tem jeito mais. O fedaputa morreu de corona. E os filho dele tão tudo escondeno num sítio, morrendo de medo de adoecer. Ficam só gerenciando de longe... Já liguei prá eles e falaram que não podiam fazer nada e agora quando ligo nem atendem mais. E aí, como num tem ninguém prá consertar o mal feito, minha mãe não consegue receber.

- E prá piorar vem o corona...

- Ela pegou da patroa que trouxe a porra do vírus das Europa. E ainda mandou ela embora, desconfiando dela.

- Os bacana foram longe buscar essa doença de merda e agora deixam de presente pros pobre.

- Aquilo me deu nos nervos. E agora com ela doente, eu tenho que ficar cuidando dela sem poder trabalhar porque tá proibido... Aí quando eu vi aquela notícia de que uma porrada de militar tinha recebido a ajuda emergencial ilegalmente... eu falei: - quer saber? Foda-se. Daí, tô aqui.

- Ô, arrasô, Véi...

- Ó... É aqui...

Chegam em um muro nos fundos de uma casa grande e muito bonita em estilo colonial. Pulam o muro e caem em um amplo quintal gramado, com um grande jardim já meio descuidado e uma varanda gourmet na entrada da cozinha.

- Hum, tem até churrasqueira daquelas cheia de firula, com motor e tal... isso quer dizer que é gente cheia da grana. – Comemora Julito.

- É, mais ou menos...

- Cê sabe quem são os dono?

- Lógico, né? São os fidumaégua dos filhos do seu Francisco.

- Da padaria? Rá! Agora senti firmeza. Vingança é prato que come cedo!

- Vingança é prato que se come Frio.

- Quê?

- A frase certa, porra. Vingança é prato que se come Frio. Quer dizer que prá vingar tem que ter paciência, planejar direito... É por isso que ainda tô na dúvida. Essa história de vingança não tá com nada não...

- Ah, não, agora que a gente tá aqui não vai dar prá trás não.

- Por que que cê não entra sozinho?

- Cara, cê sempre foi campeão de entrar nas casa dos outros, agora fica cheio de frescura.

- Tá, mas eu entrava e saía sem mexer em nada. Só pela emoção.

- Já saquei. Vai ficar então só na torcida?

- Eu fico vigiando.

- Tá beleza... quer saber? Acho que cê tem razão... Sua mãe pode se curar sozinha, né? Bobagem ficar preocupando com comida e remédio, né? Vambora então.

- Pô, não precisa apelar né? Tá bom...

Flavinho pega então uma chave de fendas e um pedaço de arame retorcido e em menos de um minuto a porta está aberta.

- Fidumaégua! Ainda num sei cumé que ocê faz isso...

Assim que entram pela cozinha, Julito pega seu celular e ilumina o caminho, mas ao entrar na sala, Flavinho segura o braço de Julito.

- Que foi?

- Tá ouvindo?

- Não ouvi nada.

- Acho que foi um gemido...

- Deve tá vindo da rua. Cê tá muito neurado véi.

- Não é não. Tá vindo dali.

Cheios de cuidados, vão conferindo os quartos até que, ao se aproximarem da última porta, que está fechada, ouvem novamente o gemido, agora mais forte, e saem correndo assustados, derrubando e tropeçando em tudo pelo caminho. Julito corre na frente e só quando vai pular o muro percebe que Flavinho tinha ficado prá trás, parado do lado de fora da porta da cozinha, com o coração batendo disparado.

Julito o chama, mas ele parece não ouvir. Volta então com cuidado e só percebe sua cara de preocupação quando se aproxima dele.

- Que foi véi? A gente tem que vazar, tem gente na casa!

- Acho que tem alguém passando mal.

- Caraca, cumé que cê pode saber disso? Aquilo foi gemido de gente dormindo.

- Não. Esse gemido é diferente.

- Diferente de quê? É gemido de sono, tipo quando dá dormência no braço e a gente vira pro outro lado da cama.

- Não. É gemido de sofrimento.

- Mas cumé que cê sabe?

- É o mesmo que ouço todo dia da minha mãe.

- Porra, véi, mas o que que cê quer fazer? Deve ter alguém aí cuidando dela.

- Num tem mais ninguém na casa.

- Devem ter ido à farmácia, à padaria, sei lá.

- À meia-noite?

- Caraca, e o que que cê quer fazer?

- Eu vou lá.

- Tá maluco?

- Calma, parece gemido de velha, não vai fazer mal. E qualquer coisa a gente corre.

Antes que Julito pudesse retrucar, Flavinho toma o celular dele e entra novamente na casa. Se aproxima lentamente da porta, encosta o ouvido e ouve novamente o gemido. Vira para Julito e faz um sinal que vai entrar, enquanto gira com cuidado a maçaneta do quarto.

Ouve então uma respiração pesada e lenta, entremeada com um gemido irregular e sofrido. Olha para dentro e não consegue enxergar nada, mas o rangido da porta faz a respiração ficar mais ansiosa e o gemido mais intenso e Flavinho, assustado, fica parado ao lado da porta, sem saber o que fazer. Ouve então, uma voz fraca.

- Me ajuda...

Flavinho hesita, mas a respiração dela volta a acelerar novamente, e ele cria coragem e entra, apontando a lanterna do celular para dentro do quarto. Vê então, deitada na cama, uma senhora de uns 80 anos, que se move lentamente de um lado para o outro, como se tentasse respirar.

Ao vê-lo, ela tenta falar algo, mas não consegue, como se o ar não entrasse nos pulmões. Sem saber o que fazer, Flavinho pega um copo d’água no criado mudo e tenta fazê-la beber, mas, assim que ele se aproxima dela, ela segura o seu braço, ansiosa, e sussurra com dificuldade.

- Ar... – E aponta para um cilindro de oxigênio ao lado da cama, enquanto respira cada vez com mais dificuldades.

Flavinho, ainda sem entender muito, cria coragem e acende a luz do quarto e finalmente vê o cilindro de ar para onde ela está apontando. Sem saber como funciona, ele gira uma válvula e, ao ouvir o som de ar saindo, pega a máscara que estava pendurada no cilindro e coloca na sua boca e nariz, como tinha visto na televisão. A mão da mulher treme, e a sua treme mais ainda enquanto ela ainda respira com dificuldades.

Ficam assim por uns 15 minutos, mas mesmo quando ela vai se acalmando ele ainda continua a tremer, ansioso. Finalmente a respiração dela se acalma, e ela segura seu braço, empurrando-o gentilmente para longe da cama. Ele se assusta e só então percebe que ela está melhor e sorri para ele.

- Obrigada...

- A senhora tá melhor?

- Sim.

- A senhora tá sozinha aqui?

- Tô... a minha cuidadora ficou com medo do vírus e desapareceu...

- E a família da senhora?

- Eles só pagam as cuidadoras e se escondem no meio mato com desculpa de que é prá me proteger. Tá certo, tem que cuidar de quem tá vivo ainda, né?

- A senhora tá com o vírus?

Ela tenta responder mas tem uma crise de tosse, e faz sinal para ele se afastar dela, enquanto aponta para uma garrafa de álcool em uma mesinha ao lado da cama. Ele vai lá, pega a garrafa de álcool e limpa suas mãos mas ela, começa, de repente, a ficar sem ar novamente e coloca a máscara no rosto. Nesse momento Julito chega na porta com um notebook e umas caixas debaixo do braço.

- Vambora véi, vambora que já fiz a feira. Caraca! Ela tá bem?

- Parece que tá melhor agora.

- Caralho, é o Corona?

- É cara, acho que vou ligar pro SAMU.

- Cê tá maluco véi? Essa aí é deve ser a mulher do seu Francisco e mãe dos fedaputa que fuderam com sua mãe. Deixa ela aí, porra. Quer vingança maior que essa?

- Tá maluco? E vou é ligar também prá polícia porque alguém tem que ser preso nessa porra. Isso se chama abandono de incapaz.

- Tá doidão é? Você quer dizer que a gente tem que ser preso né? Preto, favelado, de madrugada na casa dos outros. Tenta explicar isso.

- Se for, que seja. Mas eu que não vou deixar ela aqui desse jeito.

- Cara, eu tô fora. Se vira aí. – E faz menção de sair.

- Espera! Deixa seu celular, pelo menos.

- Tá maluco! Os homi tem identificação de chamada, véi. Eu que não vou me fuder só por que alguém tá morrendo.

- Tô sabendo. Cê tá que nem o governo, dando desculpa prá deixar todo mundo morrer. Foda-se, então, sai fora.

Julito sai correndo, carregando o fruto de seu roubo, enquanto Flavinho fica a sós com ela, sem saber o que fazer. Se levanta e olha para os lados, como se procurasse por uma ajuda qualquer, até que vê um telefone fixo perto da cabeceira da cama. Pega, o telefone mas, quando vai discar, hesita, se lembrando de sua mãe fragilizada na cama em casa. Larga o telefone e olha para a porta, sem saber o que fazer.

De repente ela se move e a máscara cai de seu rosto e ela volta a tremer e respirar com dificuldades. Imediatamente ele corre até ela, coloca a máscara novamente em seu rosto e segura sua mão tentando acalmá-la.

Aflito, fica parado ao lado dela sem mover um músculo, olhando ansiosamente para ela, esperando uma reação. Após alguns instantes, ela se acalma novamente e a respiração parece voltar ao normal. Nesse momento ela percebe que ele está segurando sua mão, e o empurra novamente, apontando para o álcool.

Ele sorri, então, se levanta, pega o telefone e liga para 192 para chamar a ambulância. Vai, então, conferir se ela está bem e vê que sua respiração está mais tranquila. Senta-se então ao lado dela, ainda sem saber se liga para a polícia ou não, até que ela tira a máscara.

- Você já pode ir embora se quiser.

- Não. Vou esperar.

- Você quer ligar prá polícia, né?

- Mas vai dar problema prá família da senhora, né?

- É bom prá aprenderem.

- Vai dar B.O. prá mim né?

- Eu falo que você é meu neto.


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