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COVID 05 - ENFERMEIRA SUPER STAR

Atualizado: 12 de mai. de 2020



Acorda assustada, sentada no chão, com o barulho da máquina de lavar entrando na fase de centrifugação. Com o coração disparado, se levanta olhando para os lados, por um momento sem saber onde está, e sente um arrepio ao perceber que está completamente nua.

Por uma fração de segundos pensa que está no depósito de EPI do hospital, mas reconhece o barulho de sua máquina de lavar e se lembra que está na área de serviço de sua casa. É que seu marido fez uma gambiarra para evitar um vazamento na hora de centrifugar e, com isso, de dois em dois segundos ela range como porta enferrujada.

Procura o celular e o encontra dentro do tênis de cadarço rosa, que já estava seco e já tinha sido higienizado no dia anterior. Ela sempre fazia isso, colocar o celular dentro do próximo tênis, sempre que chega, para não correr o risco de calçar no dia seguinte o tênis que ela ainda não havia higienizado com seu super-extra-álcool-spray.

Olha as horas e suspira cansada ao perceber que teria que ligar dali a três horas para o hospital para confirmar se tinha saído o resultado do COVID da Silvinha. Embora tivesse conseguido uma folga para o dia seguinte, depois de ter trabalhado por 36 horas seguidas, já havia dito que cobriria a Silvinha caso ela não pudesse ir.

Sente frio e pega então, um casaco de lã de seu marido no cesto de roupa suja que é bem maior do que ela e vai até os joelhos, e sorri feliz por ainda não o ter lavado. Já fazem duas semanas que segue esse ritual, chegar em casa à uma da manhã, tirar toda a roupa ao passar pela porta, jogá-la dentro da máquina de lavar antes de encostar em qualquer coisa, lavar as mãos, esterilizar as chaves e a maçaneta, higienizar os tênis e tomar banho.

Cansada e sentindo-se culpada por ter dormido no chão, onde havia se sentado só para descansar as pernas antes de tomar banho, espera mais cinco minutos até que a máquina termine sua tarefa, enquanto esteriliza seu tênis usado naquele dia.

Terminado, pendura a roupa no varal e vai para o banheiro onde, cansada, se senta no vaso onde fica olhando para o nada, procesando a correria do dia, sem saber ainda se vai dormir no quarto ou se vai dormir na sala mais uma vez.

Já faz uns cinco dias que ela tem essa dúvida, pois, por mais higienizadas as coisas estejam, ela nunca consegue saber ao certo se pode ter se contaminado naquele dia ou não. E aquele dia foi especificamente difícil.

Repassa, então, cada detalhe do dia... aquele momento que segurou o suporte de soro para os técnicos da ambulância quando a maca quase caiu no chão, aquela hora que segurou aquele bebê enquanto a mãe era levada para a UTI, aquele momento em que aquela senhorinha de 90 anos segurou na sua mão por uns cinco minutos, que pareceram meia hora, para que ela rezasse com ela e quando ela ajudou a lavar o corpo daquele bonitão, que a havia cantado no dia anterior chamando-a de “Enfermeira superstar”, para mandar o seu corpo para o necrotério.

Todo dia fazia essa higienização mental depois da higienização física, pois sabia que precisava ficar atenta a mínimos detalhes, não só pela sua saúde, de seu marido que ronca sonoramente no quarto ou de seu filho de sete anos, que ela não abraça já tem uns três dias, mas do mundo à sua volta, pois sabe que o que sai dela vai para o mundo e daí vai para outros e para outros até que, mais cedo ou mais tarde, volta para dela.

Toma o banho, coloca um pijama que já deixa na gaveta do banheiro e, apesar de não ter conseguido se lembrar de nada naquele dia que pudesse acender o alarme, sabia que tinha um mundo de possibilidades de contaminações invisíveis à sua volta e decide, mais uma vez, se deitar na sala.

Com a cabeça em alta rotatividade, liga a TV para chamar o sono e tenta, desesperada, achar um canal que não esteja falando de morte, mas tudo o que encontra são evangélicos pedindo uma parcela dos 600 reais do povo para seus bolsos, TV escola ensinando a fazer máscaras, canal do boi mostrando vaqueiros com máscaras de couro e telejornais com gráficos e índices cada vez mais apavorantes.

Muda de canal aleatoriamente, já que não tem TV a cabo, e acaba parando finalmente em um telejornal que mostra Bolsonaro se divertindo passeando de Jet ski. Por um momento acha que é uma matéria antiga, pois um presidente não iria brincar enquanto o país passa pela pior crise de sua história, mas percebe que a matéria é atual, daquele mesmo dia.

Aumenta o volume no exato momento em que ele encosta o Jet ski perto de uma lancha em que algumas pessoas fazem um churrasco e fala para eles que não adianta mesmo fazer nada, pois 70% da população vai se infectar de qualquer jeito.

Irritada, desliga a televisão e fica ali parada, olhando para a tela. Se sente uma imbecil, uma iludida, se matando e colocando em risco sua vida e de sua família, na ilusão de que está realmente fazendo alguma coisa de relevante, enquanto o presidente se diverte, reclamando que tudo o que ela está fazendo é inútil.

Irritada, desliga também o celular, decidida a largar tudo definitivamente e simplesmente cuidar de sua família, que é o que realmente importa prá ela. Resolve que não vai mais cobrir plantão de ninguém e que vai dormir amanhã o dia inteiro.

Joga o celular no chão, e se vira para o canto para tentar dormir, mas antes mesmo que começasse a cochilar, pega novamente o celular e o liga, colocando-o sobre a mesa de centro da sala. Se vira novamente para o canto para tentar dormir, mas tão logo se cobre novamente o telefone toca e ela, sem pestanejar, atende.

- Silvinha? E aí, saiu o resultado? Não, tava acordada ainda. Sério? Sim, claro. Mas você tá bem? Tá bom, chego lá em vinte minutos. Vai descansar.

Se levanta correndo, entra no quarto e em cinco minutos já sai pronta. Pega atrás da porta da sala, em uma espécie de varal cheio de máscaras, uma máscara com a bandeira do Brasil, que o seu marido havia ganhado na manifestação de Bolsonaro, e sai batendo a porta. Volta, no entanto, joga a máscara no chão e pega uma máscara branca e sai novamente.

- 70 % é o tamanho do seu cérebro, seu assassino! – Grita enquanto bate a porta irritada.

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