Fizemos recentemente um teste de atores para nosso filme para três personagens: uma mulher jovem e bonita, uma criança e uma travesti. Como vivemos na central mundial de questionamentos, um monte de debates surgiu durante o processo: Devemos utilizar só atores ou podemos também usar não-atores? Convém ter crianças em filmes com temática polêmica e violenta? Priorizamos atrizes fodas, atrizes bonitas ou atrizes fodas e bonitas? Negros, bancos ou tanto faz? Mas foi um debate na escolha da personagem travesti que me incomodou especialmente.
Não pelo resultado ou pelo processo, é claro, pois o ator selecionado (Sam Luca) é a cara do (a) personagem, tanto simbólica quanto fisicamente, mas por um debate que está surgindo ultimamente, extremamente importante, admito, sobre a valorização da identidade de gênero na produção artística.
Apesar da gente ainda estar meio que tontos no meio das nomenclaturas do mundo LGBT (Ou LGBTI, ou LGBTQ, ou LGBTTTIS, ou...), a gente já tinha, desde sempre, resolvido que ia procurar primeiro por atrizes travestis (ou drags, ou trans, ou...) para o papel de uma drag no filme. Não por obrigação, mas porque sempre achamos que isso era importante nesses momentos de empoderamento (palavrinha horrorosa), de identidade, de discurso mesmo.
Mal sabíamos que isso já era um debate que já estava rolando há muito tempo, a ponto de atores héteros já terem se recusado a interpretar travestis para que selecionassem realmente uma travesti de verdade. Dizem que até já rolou uma espécie de boicote a um espetáculo por ter atores héteros interpretando travestis. E aí tocou em um ponto que acho meio doloroso e perigoso que é uma tendência, nesses tempos de causas e linchamentos (virtuais ou não), de se querer legislar em cima da arte.
Porque aí entra em um terreno foda que são os limites da liberdade de criação, onde a obrigatoriedade de ser politicamente correto ergue uma parede em torno do processo criativo, que tem que passar pelo crivo do limpinho e cheiroso e socialmente aceitável para ser aprovado.
Nosso filme “Atrás dos olhos das meninas sérias” é um filme politicamente incorreto do osso ao fio do cabelo, mas somente na forma, pois é contundentemente politizado no conteúdo e no discurso subjacente. Quando montaram o espetáculo com o mesmo nome, a Cia. Pierrot Lunar nunca conseguiu captar recursos para a produção, exatamente pela polêmica do tema.
Hoje em dia a galera xinga Chico Buarque porque fez uma música (que nem gostei muito também), onde uma frase levantou uma ponta de machismo, ou um hífen mal colocado denotou um ranço histórico, blá, blá, blá. Imagina se Chico lançasse Mulheres de Atenas hoje, ele seria linchado em praça pública. “Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas. Sofrem por seus maridos poder e força de Atenas.”. Escroto, facista, coxinha! Gritariam em polvorosa.
E o movimento punk? E os tropicalistas com suas roupas coloridas e suas guitarras barulhentas em tempos de ditadura militar, em que se buscava uma identidade brasileira? E Frida, Goya, Death Metal, Tarantino, Kubrick, “Laranja Mecânica”, Cláudio Assis, Carlos Magno Rodrigues com seu punk-cinema, Bukowski, Conde de Lautréamont e centenas de outros loucos revolucionários?
É lógico que temos limites (esperando para serem rompidos por alguém mais louco que nós) que passam pela nossa humanidade, nossa sensibilidade básica de seres se roçando em sociedade, mas essa loucura de querer legislar e regulamentar a arte pode ser um excelente material para os moralistas/facistas de plantão, pois quem cria “escolas sem ideologia” iria amar que só se produzisse arte de boutique, delimitada e regrada, sem criar polêmica ou confusão.
Quando um espetáculo tem atores com a cara pintada de preta simulando negros, arrepiamos até o último fio de cabelo de nossa cavidade anal, mas quando vemos, por exemplo, a leveza da travesti interpretada por Odilon Esteves, por exemplo, sentimos que o resultado pode ser muito mais positivo para uma causa do que se tivéssemos uma atriz ruim, drag, interpretando o mesmo personagem. Evidentemente que podem haver drags que interpretariam infinitamente melhor que um Odilon fazendo uma drag, mas a questão é essa. E arte é assim. Ela sempre é mais poderosa quando desregrada e sem limitações. E imprevisível (sem ponto final, porque o tema é amplo e ainda indefinido)